O Comef e seu contexto
- Jeff Alvares
- 11 de jun.
- 4 min de leitura

A notícia da criação do Comitê de Estabilidade Financeira (Comef) do Banco Central, no mês passado, foi recebida de maneira positiva pela imprensa, não faltando quem traçasse paralelo com as reformas institucionais pós-crise em curso nos Estados Unidos e na Europa. Algumas reações, entretanto, revelam compreensão parcial da inovação, bem como do contexto internacional no qual ela se insere.
A conjunção de fatores que deu origem à recente crise foi possibilitada pelo escopo restrito da supervisão financeira tradicional, voltada à detecção de riscos à solvência de instituições individualmente consideradas, e não à identificação de vulnerabilidades sistêmicas decorrentes de correlações e conexões entre empresas. Com base nesse diagnóstico, um dos focos de reforma após a crise tem sido o desenvolvimento de mecanismos asseguradores da estabilidade sistêmica, a chamada regulação macroprudencial.
A primeira inciativa de relevo nesse sentido foi a criação do Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira (FSOC) nos Estados Unidos, com a finalidade de detectar e responder a riscos ao sistema financeiro bem como de coordenar a atuação dos reguladores federais e estaduais, cuja multiplicidade é apontada como uma das fragilidades da estrutura regulatória americana. Suas principais atribuições são identificar lacunas regulatórias, recomendar a adoção de normas mais restritivas, designar instituições não bancárias a serem supervisionadas pelo Fed, e resolver conflitos entre reguladores. Tais funções são desempenhadas mediante coleta e análise de informações provenientes de órgãos de supervisão, holdings bancárias e instituições financeiras não bancárias.
Mais recentemente, a União Europeia instituiu o Conselho Europeu de Risco Sistêmico (ESRB), com a finalidade de suprir o caráter fragmentado da supervisão centrada em mercados nacionais, prevenindo e mitigando riscos ao sistema financeiro europeu como um todo. Na persecução desse objetivo, cabe ao ESRB emitir alertas e recomendar ações corretivas de natureza geral ou específica no âmbito da União ou dos Estados membros. Dois órgãos lhe prestam consultoria permanente: um, composto por funcionários dos reguladores europeus e nacionais; o outro, por representantes da sociedade civil.
Seguindo a mesma tendência, o Reino Unido estuda consolidar a regulação prudencial de todo o sistema financeiro no Banco da Inglaterra. A regulação microprudencial ficará a cargo da Autoridade de Regulação Prudencial, a ser estabelecida como subsidiária do banco central britânico. Já a supervisão sistêmica será conduzida pelo Comitê de Política Financeira (FPC), colegiado ligado à diretoria, mas de composição mais ampla do que esta. Além de autoridade para emitir alertas e recomendações, comum a seus análogos americano e europeu, o FPC disporá do manejo direto de instrumentos macroprudenciais, de uso restrito a objetivos de estabilidade financeira.
No Brasil, a tarefa de manter a estabilidade financeira divide-se setorialmente entre BC, CVM e Susep e centra-se na prevenção e mitigação de riscos de origem intraempresa. Nenhuma entidade é responsável pela supervisão unificada do mercado e inexistem mecanismos legais de resposta conjunta a ameaças sistêmicas. Apesar dessas lacunas, o legislador não se sentiu compelido a empreender reformas estruturais amplas, haja vista que, por diversas razões, os fatores de risco causadores da crise não se manifestaram no mercado local. Assim, o processo de adaptação da estrutura regulatória brasileira para o padrão macroprudencial tem sido conduzido dentro das limitações da moldura legal existente.
A primeira medida destinada a mitigar a fragmentação regulatória brasileira foi a criação, antes mesmo da crise, do Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, de Seguros, de Previdência e Capitalização (Coremec), com a finalidade de coordenar a atuação dos reguladores, em vista da atenuação das fronteiras setoriais do sistema financeiro, e aprimorá-la, propondo a adoção de medidas de qualquer natureza. No ano passado, o Coremec instituiu o Subcomitê de Monitoramento da Estabilidade do Sistema Financeiro Nacional (Sumef), voltado à identificação e sinalização de risco sistêmico. O Coremec e o Sumef, porém, apresentam características que os afastam de verdadeiros supervisores sistêmicos. Primeiro, na ausência competência legal, não lhes é possível requerer informações de entes públicos ou privados, emitir recomendações vinculantes ou manipular diretamente instrumentos macroprudenciais. Ademais, sua organização carece de serviços de coleta e análise de dados, conselhos externos e controles de desempenho.
O Comef vem dar seguimento à adaptação da estrutura regulatória brasileira. Seu objetivo é avaliar a estabilidade financeira e definir estratégias para a mitigação de risco sistêmico. Porém, enquanto seus congêneres estrangeiros possuem atuação multissetorial, sua atuação restringe-se ao setor bancário, que é o âmbito de competência do BC. Por essa razão, sua composição limita-se aos diretores do BC, com auxílio dos departamentos correlatos. Tal estrutura faz do Comef mais um procedimento decisório diferenciado do regulador bancário em matéria de estabilidade financeira do que um órgão de supervisão sistêmica especializado.
O fato de o tsunami financeiro ter chegado às praias brasileiras apenas como ressaca deu a muitos a impressão de estarmos imunes àquele tipo de turbulência. Como resultado, a atualização do arcabouço regulatório nacional, datado das décadas de 1960 e 70, tem ocorrido de maneira pontual. O ideal seria que o legislador tomasse em suas mãos o estabelecimento de um regime macroprudencial para todo o sistema financeiro e, ao regulamentar o artigo 192 da Constituição, unificasse também a regulação microprudencial – tema para um próximo artigo.
Publicado no Valor Econômico de 7 de julho de 2011.
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