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Aspectos Jurídicos dos Mecanismos de Compartilhamento Monetário: currency board, união monetária e adoção de moeda estrangeira

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    Jeff Alvares
  • 9 de jul.
  • 27 min de leitura
A união monetária europeia é o caso atual mais relevante de compartilhamento moentário.
A união monetária europeia é o caso atual mais relevante de compartilhamento moentário.

 

Jefferson Siqueira de Brito Alvares*

 

 

1 Introdução. 2 Moeda, Estado e direito. 3 Regimes cambiais e mecanismos de compartilhamento monetário. 4 Inserção do Brasil no âmbito do tema. 5 Conclusão.

 

 

Resumo

 

O presente estudo tem por objeto os aspectos jurídicos dos mecanismos que possibilitam a utilização de uma mesma moeda por mais de um Estado: o currency board, as uniões monetárias e a adoção de moeda estrangeira. A análise parte do fenômeno monetário e de sua relação com o Estado e o direito positivo, passa pelo papel da moeda na ordem internacional, abordando em detalhe os mecanismos de compartilhamento monetário, e chega à utilidade do tema para o direito brasileiro.

 

 

Palavras-chave: Moeda. Regimes cambiais. Currency board. União monetária. Dolarização. Áreas monetárias ótimas.

 

 

Abstract

 

The object of the present study is the legal aspect of the mechanisms that enable a single currency to be used by more than one state: currency board, monetary union and outright use of foreign currency. The analysis develops from the monetary phenomenon and its relationship with the state and the positive law, through the role of money in the international order, approaching in detail the monetary sharing agreements, to the usefulness of the subject matter to the Brazilian law.

 

 

Keywords: Currency. Exchange rate regimes. Currency board. Monetary union. Dollarization. Optimum currency areas.

 

 

1 Introdução

 

              O objeto do presente estudo são as instituições erigidas pelo direito positivo para possibilitar a utilização de uma moeda por mais de um Estado, o que se dá pelo estabelecimento de currency boards, também chamados de caixas de conversibilidade, pela formação de uniões monetárias ou pela adoção de moeda estrangeira. A abordagem será restrita, porém, aos aspectos jurídicos diretamente relacionados à concretização dos objetivos que se busca atingir por meio desses mecanismos, quais sejam, a obtenção de credibilidade para a política econômica[1] e a redução de custos de transação no fluxo de capitais regional.

 

              O objeto de estudo será apresentado em seus contextos teórico e prático, possibilitando apreender a discussão que atualmente o cerca e sua relevância para a ciência jurídica. Para isso, a exposição será pautada pelo seguinte roteiro. A seção 2 trará considerações introdutórias atinentes ao fenômeno monetário e sua relação com o Estado e o direito positivo. Nela, terão destaque o papel da moeda na concretização do bem-estar social e os meios jurídicos de que o poder público dispõe para assegurar a confiança da sociedade no instrumento monetário. Tal introdução aportará subsídios teóricos para a compreensão da seção 3, na qual a moeda será analisada em sua projeção internacional. Nessa parte, o foco estará na questão dos custos associados à convivência de unidades monetárias e de regimes cambiais diversos no sistema financeiro internacional, apresentando-se os arranjos institucionais desenvolvidos para lidar com eles. Na seção 4, será a vez de demonstrar a relevância do tema para a cultura jurídica brasileira, o que se fará explicitando-se sua relação com o oferecimento de soluções para problemas atinentes à integração econômica no âmbito do Mercosul. Por fim, segue-se breve conclusão.

 

 

2 Moeda, Estado e direito

 

 

              O fenômeno monetário não recebe, por parte da ciência jurídica, a mesma atenção que lhe devota a Economia. A consequência é que quase todo o conhecimento sobre a moeda disponível no âmbito das ciências sociais se reporta ao corte metodológico desse último ramo científico. Verifica-se, pois, o predomínio de uma análise essencialmente descritiva, instrumentalizada pela construção de modelos matemáticos e dirigida à elucidação do papel do instrumento monetário na alocação social de bens escassos. Uma análise de cunho zetético, portanto, e não dogmático.[2]

 

              Ocorre que a moeda é um instituto jurídico (DE CHIARA, 1987, p. 57), objeto de normas que constituem a expressão do poder estatal na esfera econômica. Isso não significa que ela seja criação do direito positivo. Ao contrário, o fenômeno monetário surge espontaneamente a partir da ação dos indivíduos, ao estabelecerem relações econômicas baseadas na troca. Apenas num momento lógico posterior, e mesmo histórico, é que o poder soberano chama para si a competência de normatizá-lo. Tal fato, entretanto, não torna irrelevante o papel do direito na conformação da ordem monetária, cabendo-lhe precisamente estabelecer as condições para que a moeda desempenhe de maneira ótima suas funções na economia de mercado, como forma de manter a integridade do padrão de integração baseado na troca (CORTEZ, 2004, p. 63 e 132).[3] Nesse domínio, o Estado define os elementos constitutivos da moeda, quais sejam, a unidade monetária[4] e os instrumentos de pagamento[5] que a representam, estabelece os instrumentos de política monetária e prescreve condutas a serem observadas pelos particulares ao se engajarem em transações monetárias.

 

              A assunção de poder monetário pela autoridade política e a consequente elevação da moeda ao status de categoria jurídica justificam-se a partir do exame dos caracteres essenciais do Estado. Essa análise revela que um dos elementos constitutivos do Estado, ao lado do território, do povo e da autoridade soberana, é a finalidade de perseguir o bem comum (DALLARI, 2001, p. 102-107), consubstanciado nos valores da ordem, da segurança, da justiça, do bem-estar e do desenvolvimento (VIDIGAL, 1973, p. 138). Tal finalidade é o elemento axiológico da organização estatal e constitui o fundamento pelo qual os indivíduos escolhem tal forma associativa para conviver. Assim, sendo a busca pelo bem comum essencial ao Estado, ela constitui também o valor básico que informa o ordenamento jurídico, uma vez que este é o instrumental coercitivo de que o ente político dispõe para cumprir seu desígnio.

 

              No bojo da complexidade social, a tarefa do direito é identificar os fatos a serem disciplinados e valorá-los, à luz da resultante dos vetores de interesses e da finalidade a ser atingida – o bem comum –, para, então, divisar a espécie de tutela a ser instituída. No campo econômico, a abordagem marginalista identifica o bem comum na satisfação do maior número possível de necessidades individuais a partir dos fatores de produção – recursos naturais, trabalho e equipamentos – disponíveis.[6] Conceituado assim, em função da satisfação das necessidades humanas, o bem comum é sinônimo de bem-estar, e o processo social mediante o qual se busca aumentá-lo chama-se desenvolvimento.[7]

 

              O papel do Estado na promoção do bem-estar social tem variado desde a Revolução Industrial, transitando entre os extremos do afastamento absoluto, preconizado pelo pensamento clássico, e da exclusividade total, aventado pelas doutrinas socialistas. Do choque entre ambas as teses, nasceu a concepção dualista atualmente dominante, que, ao mesmo tempo em que confere importância à iniciativa privada, identifica no Estado as funções de corrigir as falhas do mercado (intervenção), orientar a economia com vistas ao bem-estar e ao desenvolvimento (direção) e atuar como agente econômico (participação) (VIDIGAL, 1979, p. 88-100). Nessa solução de síntese, o limite da atuação estatal é dado pelo princípio do máximo benefício social, significando que ela só se justifica na medida em que o benefício social que for capaz de gerar suplante seu custo, em termos marginais (VIDIGAL, 1973, p. 149).

 

              O bem-estar social implica, pois, obter o máximo de utilidade a partir dos recursos sociais escassos. Para atingir tal objetivo, o direito positivo erige instituições que se aglutinam no conceito de comércio jurídico, entendido como a organização da satisfação de todas as necessidades humanas assegurada por meio da remuneração dos fatores de produção.[8] Tal conceito expressa um conteúdo finalístico, qual seja, a satisfação das necessidades humanas, em sintonia com o objetivo precípuo do próprio ordenamento jurídico e do Estado como um todo. Em torno dessa finalidade, estrutura-se um arcabouço institucional visando a lhe dar concretude, centrado no mecanismo de mercado, dentro do qual a moeda ocupa posição de destaque, atuando como fator catalisador das trocas e, consequentemente, gerador de bem-estar.

 

              O efeito catalisador de trocas decorre da eficácia comunicativa da moeda, derivada do reconhecimento geral de seu valor de troca, que dispensa que se tomem em consideração os atributos pessoais da contraparte como meio de aferir a credibilidade do instrumento por ela dado em pagamento. Tal eficácia propicia a superação da necessidade de equivalência qualitativa entre os produtos na relação de intercâmbio e estabelece uma referência de valor de troca entre os diferentes bens da economia, tornando quantitativamente comparáveis produtos qualitativamente distintos. Em última análise, viabiliza-se a especialização do trabalho, mediante a eliminação da necessidade de manter estoque variado de mercadorias para consumo próprio ou para aumentar a probabilidade de encontrar um parceiro interessado em dispor do bem pretendido e em adquirir o ofertado (CORTEZ, 2004, p. 22-34; DE CHIARA, 1987, p. 47 e 57). Dessa forma, o ato de intercâmbio simplifica-se consideravelmente, passando os agentes econômicos a se relacionar com todo o mercado.

 

              No que tange ao bem-estar social, a moeda promove sua indução ao incrementar a velocidade das trocas no mercado, conduzindo à multiplicação dos atos de consumo, por meio dos quais as necessidades individuais são atendidas. Assim, admitindo-se que o bem-estar deriva da atribuição à comunidade da mais extensa soma de satisfações, conforme anteriormente exposto, verifica-se que a instrumentação monetária, ao fomentar o consumo, atua na consecução daquele valor.

 

              Fica claro, assim, que a moeda é um instituto destinado a instrumentalizar o comércio jurídico, que é, por sua vez, a projeção do direito positivo sobre a economia com vistas à realização do bem comum. Por essa razão, informado pela teoria econômica, o Estado normatiza todos os aspectos atinentes ao instrumento monetário, visando a preservar o exercício de suas funções básicas e, assim, garantir a manutenção da confiança da sociedade na moeda.

 

              Entre os aspectos disciplinados pelo direito positivo, são de especial interesse para o presente trabalho os instrumentos de política monetária, que consistem em autorizações legais para que o Estado exerça o poder econômico que o monopólio da emissão de moeda lhe confere, com vistas a influenciar as decisões alocativas dos demais agentes econômicos.[9] Com isso, o poder público domina as condições de liquidez da economia,[10] direcionando a renda social para o consumo, o investimento ou a poupança, de maneira a influir no comportamento dos níveis de preços e de atividade econômica (CORTEZ, 2004, p. 158).

 

              Os efeitos da política monetária sobre o valor da moeda verificam-se no médio e no longo prazo, em virtude do tempo envolvido na cadeia de eventos conhecida como mecanismo de transmissão da política monetária. De maneira oposta, sua influência sobre o nível de atividade econômica restringe-se ao curto prazo, como consequência do comportamento adaptativo dos agentes econômicos à expectativa de inflação futura (CORTEZ, 2004, p. 162-65). É por causa dessa limitação em influenciar de maneira duradoura as variáveis reais da economia que a literatura especializada cunhou o princípio da neutralidade da política monetária no longo prazo (SCHELLER, 2006, p. 77).

 

              Do ponto de vista prático, a principal consequência da constatação da neutralidade da política monetária no longo prazo foi a renúncia generalizada à sua utilização para modular a atividade econômica, passando-se a definir como seu objetivo primordial a manutenção do poder de compra da moeda. Tal mudança apoiou-se também na percepção de que a estabilidade de preços é fundamental para a coesão da ordem monetária e, como tal, constitui condição para a elevação sustentável dos níveis de emprego e de atividade econômica.[11] Assim, na atualidade, a discricionariedade da autoridade política no manuseio dos instrumentos de política monetária tende a restringir-se à maneira de acioná-los, uma vez que, quanto aos fins a serem atingidos, sua atuação é usualmente vinculada.[12]

 

              Vista a interação entre moeda, Estado e direito no âmbito doméstico, é necessário analisar as modificações que esse relacionamento sofre quando estudado no contexto internacional, a demandar o desenvolvimento de novas espécies de tutela jurídica.

 

 

3 Regimes cambiais e mecanismos de compartilhamento monetário

 

 

              Como toda norma jurídica, a que institui a unidade monetária e determina o curso legal de seu instrumento de pagamento vige nos limites do território estatal. Para que a moeda exerça suas funções em outro Estado, é necessária, pois, a permissão do direito estrangeiro, mediante a flexibilização da regra do curso forçado, anteriormente comentada.

 

              Essas considerações ganham importância no contexto dos fluxos internacionais de capitais, que impõem a necessidade de aquisição de moeda estrangeira, no caso de transferência de renda para o exterior, ou de sua conversão em moeda nacional, na situação oposta. Esses negócios jurídicos configuram meros contratos de compra e venda, cujo objeto, a moeda estrangeira, se transforma em mercadoria ao lhe serem negados efeitos pela ordem jurídica interna. Trata-se, não obstante, de mercadoria especial, haja vista só poder ser trocada por moeda nacional, e não por outros bens, em observância à regra do curso forçado.

 

              Os negócios jurídicos com moeda estrangeira evidenciam um novo prisma do conceito de poder de compra. Na dimensão interna da economia, ele expressa a quantidade de bens que podem ser adquiridos pelo instrumento monetário, ao passo que, no plano externo, refere-se à quantidade de moeda estrangeira que pode ser comprada. Aqui tem lugar a noção de taxa de câmbio nominal, designando a relação de equivalência entre unidades monetárias diferentes. Conceito vizinho é o de taxa de câmbio real, ou paridade de poder de compra, que exprime a comparação de quantidade de bens que podem ser adquiridos pelo uso de moedas diversas nos respectivos mercados em que têm curso legal.

 

              A taxa de câmbio é uma das variáveis consideradas pelos bancos centrais na condução da política monetária. Em regimes de câmbio fixo, ela é utilizada para direcionar as expectativas dos agentes econômicos, permitindo a construção de um ambiente de previsibilidade que torne mais fácil alcançar o objetivo final de manutenção do valor da moeda. Nesses casos, diz-se que ela atua como âncora da política monetária, devendo a autoridade trabalhar para manter seu comportamento dentro de limites previamente definidos. Outras variáveis econômicas que podem funcionar como âncoras são os agregados monetários e a taxa de juros básica da economia, essa última especialmente nos regimes de metas de inflação (CORTEZ, 2004, p. 196-210).[13]

 

              Atualmente, as principais economias mundiais adotam regimes cambiais flutuantes, ancorados em taxas-meta de juros, havendo experiências marginais de câmbio rígido. Os eventos históricos que deram origem a essa configuração remontam à segunda metade do século 19, com a instituição do padrão-ouro. Informado pela crença de que o valor do papel-moeda decorria do ativo que lhe dava lastro, tal sistema consistiu no estabelecimento de normas jurídicas nacionais autorizando a emissão de papel-moeda conversível em ouro a uma taxa invariável. Indiretamente, conduziu à formação de uma grade de paridades fixas entre as moedas de todos os Estados que adotaram a mesma regra, trazendo como benefícios a eliminação de custos advindos de variações cambiais relativas, a simplificação das operações de câmbio e a facilitação da comparação de preços internacionais. Essa organização perdurou até o início da Primeira Guerra Mundial, quando se instalou um quadro caótico de intervenção estatal sobre as taxas de câmbio, que contribuiu para a eclosão da Segunda Grande Guerra. Em 1944, passou a vigorar o sistema idealizado em Bretton Woods, estruturado com base no veto ao unilateralismo, como forma de evitar a desorganização do período entre guerras. Seus principais mecanismos eram a manutenção de paridades fixas em relação ao dólar e a conversibilidade deste em relação ao ouro, vedando-se qualquer alteração sem a aprovação prévia do Fundo Monetário Internacional. Tal ordenamento ruiu na década de 1970, dando lugar ao sistema atual, em que os arranjos baseados em âncoras cambiais cederam espaço aos regimes cambiais flutuantes, regidos pelas forças de mercado.[14]

 

              Não obstante isso, mesmo depois que as principais economias aderiram ao câmbio flutuante, muitos países em desenvolvimento mantiveram regimes cambiais fixos, mas ajustáveis, em virtude de suas moedas serem pouco negociadas internacionalmente, o que as exporia a excessiva volatilidade caso ficassem sujeitas às forças de mercado. Em anos recentes, porém, uma sucessão de crises internacionais demonstrou que esses arranjos cambiais fixos, mas que permitem ajustes pontuais, também são vulneráveis à retração dos fluxos de capitais, sujeitando-se à perda de credibilidade. A partir de então, passou-se a advogar como única alternativa viável à flutuação do câmbio a adoção de regimes de compartilhamento monetário, cujo principal efeito é excluir a possibilidade de intervenção estatal sobre a paridade cambial. Tais soluções são o currency board, a formação de uniões monetárias e o uso de moeda estrangeira (HAWKINS; MASSON, 2003a, p. 4).

 

              A razão pela qual tais sistemas são vistos como as únicas alternativas viáveis à flutuação é o fato de eliminarem a possibilidade de condução da política monetária pelas autoridades nacionais. Tal entendimento justifica-se quando se constata que a principal causa de ataques especulativos é a desconfiança gerada pelo exercício da flexibilidade monetária de forma danosa (HAWKINS; MASSON, 2003b, p. 1).[15] Dessa maneira, a delegação da condução da política monetária a um banco central regional ou estrangeiro – neste caso, quer de forma direta, como na adoção de moeda estrangeira, quer de forma indireta, como no currency board – alheio a ingerências políticas pode ser uma maneira oblíqua de obter os benefícios que adviriam da condução independente da política monetária no âmbito interno e de induzir à execução de reformas econômicas (HAWKINS; MASSON, 2003a, p. 5).

 

              O currency board é o sistema normativo no qual a emissão de papel-moeda é condicionada ao ingresso de reservas em moeda estrangeira em valor equivalente, segundo uma taxa fixa, estando a autoridade monetária obrigada a efetuar operações de câmbio àquela paridade. Muito comuns nas administrações coloniais europeias, tornaram-se pouco populares após a segunda guerra mundial, ante a reafirmação do nacionalismo por meio do pleno exercício da soberania monetária. Durante a década de 1990, voltaram a despertar interesse, quando se passou a considerar mais importante ter uma âncora monetária estável do que ser capaz de usar a política monetária para fins contracíclicos. Atualmente, seus principais exemplos encontram-se na Bósnia, Bulgária, Estônia, Hong Kong e Lituânia (HAWKINS; MASSON, 2003a, p. 18-21).

 

              A adoção de moeda estrangeira, por sua vez, é a reação natural de uma economia pequena com fortes vínculos comerciais e financeiros em relação a uma economia maior. Pode ocorrer de maneira não oficial, isso é, sem a intervenção estatal, quando a sociedade perde a confiança em sua moeda doméstica e passa a utilizar o instrumento monetário estrangeiro em suas relações econômicas cotidianas, fenômeno conhecido como substituição monetária.[16] De maneira oposta, pode ser fruto de uma decisão estatal, formalizada por meio de um ato unilateral, quando o poder público atribui curso legal a uma moeda estrangeira independentemente da anuência do ente soberano que a emite,[17] ou de um tratado, quando o compartilhamento do padrão monetário decorre da convergência de vontades entre o Estado emissor e o Estado cliente.[18]

 

              Já a união monetária, também chamada de área monetária regional, é o arranjo institucional no qual dois ou mais Estados fixam recíproca e irrevogavelmente sua taxa de câmbio e cedem a uma entidade supranacional a porção de sua soberania relacionada à administração monetária. Essa entidade passa, então, a emitir uma moeda comum, com curso legal no mercado interno de todos os Estados participantes, e a gerir os instrumentos de política monetária para toda a região. É estabelecida geralmente como parte de um processo de integração de objetivos mais amplos, em que a intenção de reduzir custos de transação no comércio regional soma-se a preocupações atinentes à obtenção de estabilidade cambial, comuns aos outros dois tipos de arranjos. O exemplo paradigmático é a união econômica e monetária europeia, composta por Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Malta e Portugal, onde circula o euro.[19]

 

              A afinidade dos mecanismos de currency board, união monetária e adoção de moeda estrangeira não é só econômica, mas também jurídica. Do ponto de vista econômico, como já exposto, sua proximidade decorre da identidade de motivação que leva os Estados a adotar regimes cambiais absolutamente rígidos, isto é, a busca de credibilidade, com vistas à obtenção de estabilidade cambial e de proteção contra ataques especulativos. Do ângulo jurídico, tais regimes têm em comum o fato de se fundarem na restrição ao exercício da soberania monetária, em diferentes graus.

 

              No currency board, tal restrição é mínima, visto que prossegue a emissão de moeda nacional. Essa moeda, entretanto, deixa de desempenhar a função de padrão geral de valor de troca, que se transfere à unidade monetária estrangeira adotada como reserva,[20] havendo, em consequência, submissão à política monetária do Estado emissor. Já na união monetária, a restrição ao poder monetário é média, uma vez que, apesar de as moedas nacionais deixarem de circular, o instrumento que as substitui é emitido por um órgão cuja existência é legitimada pela vontade de todos os Estados e de cujas decisões todos participam, inclusive no que tange à formulação da política monetária. Diferente é o que ocorre na adoção de moeda estrangeira, em que se abdica totalmente do exercício da soberania monetária. É que, nesse caso, as quatro funções monetárias básicas deixam de ser desempenhadas pela moeda nacional, tendo a economia que se sujeitar inteiramente à política monetária definida no exterior.

 

              A partir da década de 1960, com o trabalho seminal de Mundell (1961), a teoria econômica passou a se dedicar à identificação das condições essenciais para a viabilidade de experiências de compartilhamento monetário, reunidas na teoria das áreas monetárias ótimas. A abordagem tradicional do problema baseava-se na proposição de critérios que deveriam ser atendidos a fim de minimizar os custos da experiência.[21] Atualmente, porém, prevalece o entendimento de que tais critérios nada mais são do que indicadores da real condição para um compartilhamento monetário harmônico: a simetria de choques entre as economias envolvidas, isto é, o fato de um mesmo choque econômico lhes causar efeitos semelhantes. É que, havendo similaridade de choques, a resposta da política monetária comum será adequada para enfrentar o problema em todos os Estados que utilizem a mesma moeda. Na hipótese de não haver tal simetria, impõe-se a existência de mecanismos alternativos ao câmbio para enfrentar os choques de maneira satisfatória em toda a área monetária (COSTA, 2003, p. 17-18). Isso não significa, entretanto, que Estados sujeitos a choques assimétricos ou que não disponham de mecanismos extracambiais para superá-los não possam adotar regimes de compartilhamento monetário. Isso porque, segundo entendimento corrente, os fatores definidores das áreas monetárias ótimas são endógenos, isto é, surgem ou intensificam-se como consequência do próprio regime (COSTA, 2003, p. 43-44; GONÇALVES, 2003, p. 31-32 e 61-62), não obstante seja desejável a existência a priori de certo nível de correlação de choques ou de alternativas de ajuste (COSTA, 2003, p. 18).

 

              Pode-se inferir, dessa forma, que o principal desafio do direito positivo diante da decisão soberana de compartilhar a moeda é a instituição de tutelas que garantam o sucesso dessa experiência. Tal empreendimento passa pela reflexão sobre se a região envolvida constitui uma área monetária ótima e, em caso negativo, sobre as soluções necessárias para lidar com a possibilidade de choques assimétricos e para permitir a progressiva convergência econômica, de modo a minimizar, e eventualmente eliminar, o custo de abdicar do pleno exercício do poder monetário.

 

 

4 Inserção do Brasil no âmbito do tema

 

 

              A partir das considerações feitas na seção anterior, depreende-se que a relevância para a ciência jurídica do estudo das experiências de compartilhamento monetário reside na contribuição ao desenvolvimento de tutelas para questões como a escolha do regime cambial ótimo em economias em desenvolvimento, a prevenção de crises no sistema financeiro internacional e o aprofundamento dos processos de integração regional. No que diz respeito à cultura jurídica brasileira, especificamente, o exame da história econômica regional recente deixa patente tal relevância.

 

              Desde a implementação do Plano Real, em 1994, e, principalmente, após as crises da segunda metade da década de 1990, muito se tem discutido sobre qual o regime cambial ótimo para o Brasil e para os demais países do Mercosul. Com efeito, no período imediatamente posterior à introdução do real, a ausência de um histórico de credibilidade da atuação do Banco Central do Brasil, no que tange à condução da política monetária, e do governo central, em relação à política fiscal, despertaram dúvidas sobre a sustentabilidade do câmbio rígido então adotado. Tais dúvidas foram crescendo à medida que outras experiências de controle cambial foram sucumbindo – México, em 1994; Coreia do Sul, Hong Kong, Filipinas, Indonésia, Malásia e Tailândia, em 1997; e Rússia, em 1998 –, de tal sorte que diversos autores passaram a sugerir que o Brasil dolarizasse sua economia. Tais sugestões, a propósito, foram em grande parte inspiradas na experiência da Argentina, que, vivendo desde 1991 sob o regime de currency board, experimentou a substituição do peso pelo dólar em parcela relevante das transações econômicas. Ao mesmo tempo, havia quem sugerisse a formação de uma união monetária, com a adoção de um mecanismo cambial nos moldes do adotado pelo Sistema Monetário Europeu. Para seus proponentes, tal solução deveria englobar todos os membros do Mercosul, uma vez que o ciclo econômico de seus sócios menores, Paraguai e Uruguai, estava atrelado ao dos maiores, Brasil e Argentina, em virtude de sua dependência comercial.

 

              A partir de 1999, entretanto, com a flutuação do real e o êxito do sistema de metas de inflação, a literatura econômica deixou de sugerir o retorno a âncoras cambiais para a política monetária brasileira. Já no que tange à Argentina, a crise de 2001, que conduziu ao fim da conversibilidade e à consequente liberação do câmbio, não deu lugar à formação de um ambiente de confiança. A princípio, a atividade econômica acelerou-se vigorosamente, impulsionada pelas exportações e pela retomada do consumo interno. Tal movimento, porém, foi acompanhado da imposição de controles de preços e de fluxos de capitais, o que gerou graves distorções, que atualmente se manifestam na forma de restrições ao crescimento econômico e de inflação elevada. Esse panorama tem levado alguns autores a permanecer na defesa da adoção de regimes de compartilhamento monetário para o país platino, especialmente a dolarização, havendo também quem advogue a união monetária com o Brasil ou mesmo a adoção do real em substituição ao peso.

 

              Há muita controvérsia, porém, a respeito da viabilidade do estabelecimento de uma união monetária no Mercosul e de outras modalidades de compartilhamento monetário, entre as quais a adoção do real pelos demais membros do bloco ou sua utilização mediante currency board. Isso porque, em seu estágio atual, o projeto de integração econômica do Cone Sul não passa de uma união aduaneira duplamente imperfeita, tanto pela existência de número considerável de barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio regional quanto pela considerável lista de exceções à tarifa externa comum(SALOMÃO FILHO, 2002, p. 406). Além disso, seus membros apresentam relevantes divergências macroeconômicas (ARESTIS et al., 2003, p. 15-21; CHAGAS, 2004, p. 35-46; FALGETANO, 2006, p. 62-69), baixo grau de correlação de choques e ausência de instrumentos de ajuste alternativos ao câmbio (mobilidade de mão-de-obra e de capital), indicando que teriam dificuldade em combater flutuações mediante uma política monetária comum (COSTA, 2003, p. 43). Em sua atual configuração, pois, o Mercosul não é uma área monetária ótima (ARESTIS et al., 2003, p. 21; BOSCOLI, 2005, p. 76-78; CHAGAS, 2004, p. 68; FALGETANO, 2006, p. 81).

 

 

5 Conclusão

 

 

                      Os mecanismos de compartilhamento monetário estudados no presente trabalho possuem em comum aspectos econômicos e jurídicos que justificam seu tratamento como categoria científica autônoma. Do ponto de vista econômico, currency board, união monetária e adoção de moeda estrangeira servem à função de angariar credibilidade à política econômica, mediante a renúncia, em diferentes graus, ao exercício autônomo da política monetária. Podem também agregar a finalidade de reduzir custos de transação no comércio internacional associados à existência de padrões monetários diferentes. Sob o prisma jurídico, tais modalidades de compartilhamento pressupõem a autolimitação de porção da soberania estatal, correspondente ao poder de emitir moeda e de administrar os instrumentos de política monetária de forma independente. Além disso, a evolução da pesquisa do campo das áreas monetárias ótimas indica a necessidade de construção de soluções jurídicas específicas para cada caso concreto de compartilhamento de moeda, de forma a adaptar o arcabouço regulatório à situação concreta de simetria de choques e de existência de mecanismos de ajuste alternativos ao câmbio.

 

                      As crises representam oportunidades para o desenvolvimento da pesquisa econômica e acabam conduzindo ao aperfeiçoamento das instituições jurídicas correlatas. Em relação à matéria aqui discutida, a crise financeira iniciada em 2007 prenuncia mudanças na realidade econômica que demandarão o aprofundamento da pesquisa científica na área. No horizonte que se descortina, pode-se apontar como aspecto de mudança a queda da credibilidade do dólar, implicando a redução de sua capacidade de atuar como reserva de valor e ocasionando, em consequência, alterações nas experiências de compartilhamento monetário que o tem como objeto (THE ECONOMIST, 2009). Nesse contexto, o ouro emerge como ativo de maior credibilidade (FINANCIAL TIMES, 2009a), havendo vozes que se levantam no sentido do retorno ao padrão corrente no fim do século 19 de paridades fixas lastreadas nesse metal (TETT, 2009). Além disso, experiências de currency board até então consideradas de sucesso, como as do Leste Europeu, demonstram sua fragilidade diante do excessivo endividamento em moeda estrangeira (FINANCIAL TIMES, 2009b). As uniões monetárias, por sua vez, enfrentam o desafio de coordenar o exercício da política monetária à condução da política fiscal, visando a tornar mais eficiente a busca dos objetivos de estabilidade de preços e incremento da atividade econômica (MUNCHAU, 2004).

 

                      No que tange especificamente ao Brasil, o desafio consiste na preservação da credibilidade e da estabilidade monetária conquistadas pelo país em anos recentes, para o que o conhecimento dos regimes de compartilhamento monetário constitui importante instrumento a orientar futuras decisões políticas.

 

 

Referências

 

 

ARESTIS, Philip et al. O euro e a UME: lições para o Mercosul. Economia e sociedade, Campinas, v. 12, n. 1 (20), p. 1-24, jan./jun. 2003. Disponível em: <http://www.eco.unicamp.br/docdownload/publicacoes/instituto/revistas/economia-e-sociedade/V12-F1-S20/01-Arestis.pdf>. Acesso em: 27 maio 2009.

 

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*   Procurador do Banco Central e membro da International Law Association. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (2005).

[1]   Fala-se aqui em política econômica, e não em política monetária, porque, como se verá no decorrer do trabalho, tais mecanismos implicam na abdicação, em diferentes graus, do exercício autônomo da política monetária.

[2]   A distinção, cunhada por Viehweg, é explicitada por Ferraz Junior (2003, p. 41) da seguinte forma: “Questões zetéticas têm uma função diretiva explícita e são infinitas. [Nelas], o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). [Nas questões dogmáticas], o problema tematizado é configurado como um dever-ser (como deve-ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar a ação.” (Destaques no original.)

[3]   A função primordial da moeda numa economia de mercado é servir como meio geral de troca, o que só é possível se ela for capaz de desempenhar simultaneamente as funções de reserva de valor, padrão geral de valor de troca e meio geral de pagamento. Diferentemente, em ambientes institucionais baseados na reciprocidade ou na redistribuição, e não na troca, a moeda não atua como meio geral de troca e cumpre apenas uma ou algumas das demais funções (CORTEZ, 2004, p. 10-22 e 34-38).

[4]   Ao definir a unidade monetária, o Estado pode determinar o seu curso forçado, obrigando os agentes econômicos a fixar seus preços naquele padrão e a observar seu valor nominal. Por conta disso, ficam vedadas a expressão do valor das obrigações pecuniárias em moeda estrangeira, ouro ou qualquer outro bem, ainda que o efetivo pagamento seja feito em moeda corrente, e também sua correção com base em índices de inflação. No Brasil, o curso forçado da moeda estatal não é imposto de forma rigorosa. Faculta-se a estipulação em moeda estrangeira ou ouro nas hipóteses permitidas por lei especial (Código Civil, art. 318) e a pactuação de cláusulas de escala móvel em periodicidade igual ou superior a um ano, ou, em casos especiais, sem restrição temporal (Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, art. 28).

[5]   Aos instrumentos de pagamento definidos pelo Estado, associa-se a regra do curso legal, impondo-se sua aceitação para a liberação de vínculos obrigacionais de qualquer natureza.

[6]   Tal concepção de bem comum tem por pressuposto não só a maximização do volume total dos rendimentos advindos do processo produtivo (renda social), mas também a sua distribuição equitativa, como forma de assegurar, a um só tempo, o incentivo oriundo da propriedade privada tanto dos meios de produção quanto do produto social e a dignidade da pessoa humana.

[7]   A realização do bem-estar exige a maximização dos gastos de consumo, de forma a dar satisfação imediata às necessidades humanas. Já o desenvolvimento requer a elevação da poupança, com o intuito de incrementar o produto social e possibilitar maiores níveis futuros de consumo. Como a escolha entre consumo e poupança é mutuamente excludente, também o é a opção entre os extremos de bem-estar atual e de desenvolvimento (VIDIGAL, 1973, p. 211-12, 1977, p. 57 e 128-29). Deve-se notar, a propósito, que o conceito de desenvolvimento é tomado aqui em seu aspecto puramente econômico, não se podendo olvidar, contudo, que se trata de fenômeno social mais amplo, abarcando também os campos institucional, cultural e político (NUSDEO, 2002, p. 19).

[8]   A definição original, atribuída a Jhering, veicula a palavra “salário” em lugar da expressão “remuneração dos fatores de produção” (DE CHIARA, 1987, p. 21).

[9]   Os instrumentos clássicos de política monetária são o depósito compulsório, o redesconto e as operações em mercado aberto.

[10]  A condição geral de liquidez da economia depende da situação de liquidez dos agentes econômicos, isto é, da quantidade de moeda por eles detida que esteja livre para ser levada a mercado, e de sua preferência pela liquidez, derivada da maior utilidade marginal que esses agentes possam vislumbrar na retenção da moeda. A alteração dessas variáveis modifica o nível de procura efetiva observado nos mercados, com reflexos sobre o comportamento geral dos preços (VIDIGAL, 1977, p. 178).

[11]  O papel institucional da moeda na economia de mercado depende de que haja demanda por ela. Para isso, é necessário que os agentes econômicos nela identifiquem uma utilidade, a qual, em última análise, é a sua capacidade de atuar como mecanismo redutor de incertezas no intercâmbio comercial. Entretanto, para que o instrumento monetário possua tal utilidade, ele deve ser capaz de manter seu poder de compra ao longo do tempo, atuando como reserva de valor. Quando seu custo de carregamento, representado pela perda de seu poder de compra, é demasiado, o desempenho de sua função de meio geral de troca torna-se inviável, podendo dar lugar a fenômenos como a substituição monetária ou o retorno ao escambo. O mesmo se passa com sua função de padrão geral de valor de troca, uma vez que a estabilidade de preços é essencial para o processo social de aprendizado que permite associar o valor real da unidade monetária, isto é, o seu poder de compra, ao seu valor nominal (CORTEZ, 2004, p. 34, 41 e 56-59).

[12]  No Brasil, o Decreto nº 3.088, de 21 de junho de 19699, instituiu a sistemática de metas para a inflação como diretriz para a fixação do regime de política monetária. Na Europa, o Artigo 105(1) do Tratado da Comunidade Européia estabelece como objetivo primário do Sistema Europeu de Bancos Centrais a manutenção da estabilidade de preços. É importante notar que o regime de metas de inflação não reduz o objetivo de toda a política econômica à manutenção do poder de compra da moeda. Tais metas, de caráter instrumental, são fixadas apenas para a execução da política monetária. Para o conjunto da atuação econômica estatal, a meta implícita é atingir o pleno emprego, sem distorções inflacionárias (VIDIGAL, 1973, p. 203). Nesse sentido, o Federal Reserve Act, seção 2a, define como objetivos do Board of Governors do Federal Reserve System e do Federal Open Market Committe, ao lado da estabilidade de preços, o nível máximo de emprego e taxas de juros de longo prazo moderadas.

[13]  Desde a implantação do real, em 1994, o Banco Central do Brasil utilizou diferentes âncoras para a execução de sua política monetária. Os art. 4º e 6º da Lei nº 9.069, de 1995, estabeleceram metas para os agregados monetários, impondo, respectivamente, um limite quantitativo para a emissão no segundo trimestre de 1994 e a necessidade de apresentação de programação monetária para os trimestres seguintes. O art. 3º da mesma lei, por sua vez, definiu metas para o câmbio, vinculando a emissão monetária ao ingresso de reservas em valor equivalente, observada a paridade de um real por dólar. Essa taxa foi alterada quando da implantação do sistema de bandas administradas, o qual perdurou até a desvalorização de 1999, ocasião em que passou a vigorar o atual regime de câmbio flutuante com metas de inflação.

[14]  O apanhado histórico baseou-se em Lowenfeld (2003, p. 9-15).

[15]  Gonçalves (2003, p. 34-48), estudando a racionalidade político-econômica que leva alguns Estados a abrir mão do manejo discricionário de sua política monetária, delegando-o a um ente supranacional, demonstra que o principal benefício vislumbrado é a garantia de bem-estar futuro, que se obtém mediante a extinção do risco de que a política monetária possa vir a ser conduzida por governos futuros com preferências inflacionárias mais brandas. É o que se chama de “amarrar as mãos do sucessor”. Pode-se falar, portanto, num custo de não-adesão a esquemas de compartilhamento monetário, que cresce com a importância que o governante atual atribua ao futuro e com a dispersão das preferências políticas na sociedade.

[16]  A Argentina viveu uma experiência de dolarização não oficial de sua economia durante o regime da conversibilidade, na década de 1990.

[17]  El Salvador, em 1999, e Equador, em 2000, substituíram unilateralmente suas moedas nacionais pelo dólar americano.

[18]  É o caso do uso do franco suíço por Liechtenstein; do rand sul-africano por Lesoto, Namíbia e Suazilândia; do euro por Mônaco, San Marino e Cidade do Vaticano; do dólar americano por Panamá, Micronésia e Ilhas Marshall; e da coroa dinamarquesa pelas Ilhas Féroe (FREIS, 2004, p. 20).

[19]  Outros exemplos atuais de união monetária são a União Econômica e Monetária Oeste-Africana (Uemoa), composta por Benin, Burkina Faso, Guiné Bissau, Costa do Marfim, Mali, Níger, Senegal e Togo, onde tem curso o franco da comunidade financeira da África; a Comunidade Econômica e Monetária da África Central (Cemac), de que são membros Camarões, Chade, Gabão, Guiné Equatorial, Congo e República Centro-Africana e onde circula o franco da cooperação financeira na África Central; e a União Monetária do Caribe Oriental (Umco), composta pelos Estados independentes Antígua e Barbuda, Dominica, Granada, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia e São Vicente e Granadinas e pelos territórios britânicos de Montserrat e Anguilla, entre os quais circula o dólar do Caribe Oriental.

[20]  Numa economia em que a emissão monetária obedece às regras do currency board, ainda que os preços sejam denominados na unidade de conta nacional, é moeda estrangeira que desempenha a função de padrão geral de valor de troca, uma vez que é dela que deriva o valor da moeda nacional.

[21]  Abstraindo-se divergências pontuais, a literatura tradicional aponta os seguintes requisitos para a configuração de áreas monetárias ótimas: livre mobilidade de fatores de produção (mão-de-obra e capital), flexibilidade de preços e salários, similaridade de estruturas produtivas, abertura da economia, diversificação do comércio exterior, presença de fluxo comercial intra-área intenso, semelhança de tamanho das economias, convergência de taxas de inflação, integração fiscal e similaridade de preferências sociais (BOSCOLI, 2005 p. 15; CHAGAS, 2004, p. 4-9; GONÇALVES, 2003, p. 9-12).



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