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Pix 2.0, entre inclusão e a concorrência global

  • Foto do escritor: Jeff Alvares
    Jeff Alvares
  • 9 de out.
  • 4 min de leitura


A comunidade internacional precisa ter clareza sobre os limites do poder público na persecução de objetivos legítimos como estabilidade, eficiência e inclusão financeira.
A comunidade internacional precisa ter clareza sobre os limites do poder público na persecução de objetivos legítimos como estabilidade, eficiência e inclusão financeira.

Jefferson Alvares

Em julho, os EUA iniciaram uma investigação para apurar se o Pix restringe indevidamente a atuação de empresas americanas no mercado brasileiro de pagamentos eletrônicos. A medida sucede à inclusão da Índia e da Indonésia no relatório de barreiras comerciais de maio e confirma a disposição de Washington de confrontar soluções públicas que alterem as condições de concorrência em seu desfavor. O embate definirá como os bancos centrais e o setor privado conviverão na era digital. É também uma oportunidade de reflexão sobre o futuro do Pix.


Os sistemas de pagamentos possuem duas camadas. A infraestrutura - os “trilhos” - é operada pelos bancos centrais no atacado e pelos bancos no varejo. No Brasil, seu coração é o Sistema de Transferência de Reservas (STR) do Banco Central, que acerta as posições líquidas dos bancos após a compensação por câmaras específicas para TEDs, boletos, cheques, cartões e derivativos. A interface com o usuário - o front-end - cabe aos arranjos de pagamento, que administram a marca, as regras, a rede de aceitação e a tecnologia (cartões, aplicativos, QR Code, carteiras digitais). Os arranjos dependem da infraestrutura para liquidar transações.


Os sistemas tradicionais geram ineficiências — acesso restrito, custo elevado e lentidão —, sobretudo em países emergentes. A baixa concorrência bancária limita o acesso aos serviços de pagamento, encarece as tarifas e reduz os incentivos à adoção de tecnologias mais velozes.


Esse cenário começou a mudar com a internet. Primeiro, surgiram as instituições de pagamento (IPs) não bancárias, que ampliaram o acesso às contas de pagamento. Depois, vieram os sistemas de pagamentos instantâneos (SPIs), públicos ou privados, que liquidam transações em tempo real, 24 horas por dia, sete dias por semana. São exemplos FedNow e RTP (EUA), BI-FAST (Indonésia), UPI (Índia) e SIC (Suíça). Surgiram também arranjos que operam sobre essas infraestruturas, tais como Zelle (EUA), QRIS (Indonésia), Google Pay, Paytm e PhonePe (Índia) e Twint (Suíça).


O Brasil inovou ao integrar trilhos e front-end, com o Banco Central operando tanto a infraestrutura de liquidação (SPI) quanto o arranjo de pagamentos (Pix). Além disso, bancos e IPs relevantes foram obrigados a aderir a ambos, ofertando o serviço sem custo a indivíduos e pequenas empresas. O Pix é um instrumento de política pública concebido para universalizar tanto a oferta quanto a demanda. Seus resultados foram notáveis: atinge hoje 90% da população adulta e responde por mais da metade das transações de pagamento, reduzindo o espaço de cartões e instrumentos bancários.

O Pix 2.0 deve buscar o equilíbrio entre inclusão financeira, concorrência e inovação. Uma abordagem possível seria estabelecer duas camadas de serviços sobre o sistema de pagamento instantâneo: uma básica, obrigatória e gratuita, outra premium, opcional e tarifada

A centralidade do Pix traz benefícios: universalidade, tarifas baixas, interoperabilidade plena e padronização técnica que facilita inovações complementares. Por outro lado, a obrigatoriedade e a gratuidade criam barreiras econômicas significativas para a entrada de arranjos alternativos no mercado. Apesar de formalmente aberto, o SPI serve apensar ao Pix. Os participantes deste podem adicionar camadas de valor agregado dentro do arranjo, mas não têm como rivalizar com sua ubiquidade e modicidade tarifária. A falta de concorrência pode limitar o poder de inovação de bancos e fintechs, inibindo a oferta de serviços acessórios como empréstimos integrados, programas de recompensas, seguros, ofertas dinâmicas, rede internacional e gestão financeira.


Os EUA enxergam no Pix um monopólio público de fato, em potencial conflito com o Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS) da Organização Mundial do Comércio (OMC). As regras relevantes tratam de regulação doméstica, acesso a mercado e tratamento nacional. Washington tem precedente. Em 2012, venceu a China na OMC ao contestar a exclusividade da UnionPay como infraestrutura e arranjo de pagamentos em moeda local. O painel concluiu que o monopólio na liquidação de certas transações com cartão limitava o acesso ao mercado e que a exigência de integração à interface com o usuário era discriminatória. A China não recorreu, e o fim da exclusividade da UnionPay abriu espaço para Alipay e WeChat Pay dominarem o mercado.


Em eventual litígio, os EUA sustentariam que o Pix produz efeitos comparáveis. Mas o Brasil teria contra-argumentos. Poderia alegar que o Pix é um serviço público imprescindível para a inclusão financeira, não uma atividade econômica monopolística; que seu impacto econômico atingiu sobretudo os bancos nacionais, sem discriminação; e que os compromissos do GATS sobre pagamentos eletrônicos não contemplam os pagamentos instantâneos, então inexistentes.


O Pix 2.0 deve buscar o equilíbrio entre inclusão financeira, concorrência e inovação. O UPI indiano pode servir de referência. Com trilhos obrigatórios e front-end aberto, o UPI amealhou 500 milhões de usuários e enfrenta a concorrência de Google Pay, Paytm e PhonePe. Uma abordagem possível seria estabelecer duas camadas de serviços sobre o SPI: básica e premium. A básica, obrigatória e gratuita como o Pix, preservaria o acesso universal a funcionalidades mínimas. A premium, opcional e tarifada, permitiria experiências diferenciadas, com interoperabilidade. Os desafios seriam evitar a obsolescência do serviço básico, embutir incentivos à concorrência na prestação do serviço premium e educar os usuários sobre as diferenças entre os dois.


Os desdobramentos da investigação americana definirão o futuro da governança financeira digital. A comunidade internacional precisa ter clareza sobre os limites do poder público na persecução de objetivos legítimos como estabilidade, eficiência e inclusão financeira. O caminho exige negociação, não litígio. Em jogo está o futuro do dinheiro — e do próprio comércio internacional.


Jefferson Alvares é procurador do Banco Central. Foi advogado do Fundo Monetário Internacional (FMI) e membro do secretariado do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB). Escreve em caráter pessoal.


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