Estrutura institucional dos bancos centrais: boas práticas e más concepções
- Jeff Alvares
- 5 de jun.
- 9 min de leitura

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 65 de 2023, que almeja conferir autonomia administrativa, orçamentária e financeira ao Banco Central, ainda que com reservas [1], tem suscitado amplo debate público. Se a troca de ideias é sempre benéfica, a qualidade do debate tem sido questionável.
Isso porque falta à sociedade brasileira consenso sobre certos temas econômicos e jurídicos fundamentais já superados em economias desenvolvidas. São exemplos de temas ainda controversos entre nós o papel dos bancos centrais (BCs) no âmbito da política econômica, bem como a sua posição no regime constitucional.
A compreensão e a crítica da PEC 65 exigem familiaridade com os fundamentos que informam a estrutura institucional e o regime jurídico dos bancos centrais.
Este artigo apresenta tais fundamentos sob a perspectiva dos BCs das economias detentoras de altos níveis de bem-estar social. No percurso, enfrenta algumas concepções equivocadas sobre o funcionamento dos BCs, e em particular o do Brasil.
A discussão abrangerá a estrutura jurídica, o mandato e a autonomia dos BCs, além dos mecanismos de prestação de contas do seu desempenho.
Estrutura jurídica
O principal elemento da estrutura jurídica dos BCs é a propriedade do seu capital, que pode ser pública, privada ou mista. A maioria dos BCs pertence integralmente ao Estado, a quem cabe nomear os seus órgãos de direção e receber os seus lucros.
No início do século 20, o número de BCs com acionistas do setor privado e do setor público era próximo. Na primeira metade do século, alguns BCs privados foram estatizados, como o Banco da Inglaterra, enquanto os criados a partir de então o foram como propriedade integralmente estatal. [2].
Existem hoje nove BCs com participação acionária do setor privado, portando modelos de propriedade diversos [3]. No Japão, em São Marino, na Suíça e na Turquia, o Estado é o acionista majoritário. Na Bélgica, cerca de metade das ações são estatais. Já na Grécia, o Estado é minoritário. Em contraste, o capital dos BCs dos Estados Unidos, da Itália e da África do Sul é totalmente privado [4].
Existe a preocupação de que os BCs com capital privado possam concentrar-se em gerar lucros e dividendos, assumindo para tanto riscos excessivos.
Contudo, as evidências empíricas sugerem que os BCs com capital privado não diferem daqueles de propriedade integral do Estado na sua lucratividade ou na parcela de dividendos distribuídos [5]. Essa semelhança parece advir das suas estruturas de governança similares, já que mesmo os BCs de capital privado atuam no interesse público expresso no seu mandato, e não com vista ao lucro [6].
Mandato
O mandato dos BCs compreende os seus objetivos e as suas funções legais. Especificamente, interessam à presente discussão o objetivo de assegurar a estabilidade de preços e a função de conduzir a política monetária.
A estabilidade de preços consolidou-se como a finalidade fundamental dos BCs ao longo das últimas quatro décadas. Com o fim do sistema de paridades cambiais de Bretton Woods e os choques do petróleo na década de 1970, a economia global redescobriu a inflação, após décadas de relativa estabilidade.
A redução do bem-estar social causada pela inflação levou progressivamente à constatação de que a estabilidade de preços seria o alicerce da política econômica. Como resultado, o controle da inflação passou a ganhar assento legal como prioridade de curto prazo da política econômica.
No Brasil, até 1999, quando foi instituído o regime de metas de inflação, a política monetária não estava claramente orientada à estabilidade de preços. O Banco Central do Brasil não administrava a taxa de juros e não tinha o objetivo de controlar a inflação.
De fato, o instrumento operacional do BCB era o volume de dinheiro em circulação, calibrado para atender as necessidades gerais da economia. Esta era a sistemática da Lei 4.595, de 1964, mantida pela Lei 9.069, de 1994, a lei do Plano Real. O resultado foram décadas de hiperinflação.
Autonomia
A autonomia dos BCs visa a dar solução para o problema de inconsistência temporal entre o ciclo político-eleitoral e o ciclo da política monetária.
Governos democráticos são eleitos periodicamente. As eleições são o seu mecanismo cabal de prestação de contas. Se aprovado, o governo é reeleito, ou o seu partido permanece no poder. Para evitar o resultado oposto, o governo possui incentivos para adotar políticas populares no curto prazo.
Ocorre que o foco no curto prazo pode ter efeito deletério para o bem-estar social no médio e longo prazos, por exemplo por estimular a inflação. Em contraste, o controle da inflação pode levar os BCs a adotar políticas impopulares no curto prazo; por exemplo, por resultarem no aumento temporário do desemprego.
O custo imediato destas políticas justifica-se pelo benefício duradouro advindo da estabilidade de preços. Porém, esse benefício pode não se verificar no ciclo eleitoral em curso, o que penalizaria o governo de turno. Este teria, assim, incentivos para tentar mudar a política monetária ao seu favor.
A autonomia consiste precisamente num conjunto de salvaguardas destinadas a evitar que os governos interfiram na política monetária com vista aos seus interesses de curto prazo. Tais interesses são, por vezes, incompatíveis com o combate à inflação legalmente estatuído. Nestes casos, impõem obstáculo à promoção duradoura do bem-estar social, objetivo que norteia as diretrizes de política econômica fixadas em constituições programáticas como a nossa.
A história brasileira recente demonstra o mal que pode advir da interferência política na atuação dos BCs. Em agosto de 2011, o BCB cortou a taxa de juros abruptamente, sem explicação convincente e sob indícios de pressão política. Os juros permaneceram então artificialmente baixos nos cinco anos seguintes, no que o governo definiu como a “nova matriz econômica”. O resultado foi o período mais longo de descontrole das expectativas de inflação desde o início do Plano Real [7].
Afirma-se que a outorga de autonomia ao BCB impediria a “interação entre a área econômica do Poder Executivo e as políticas monetária, cambial e financeira” [8], sepultando o conceito de política econômica [9], em detrimento do governo eleito [10].
Entretanto, essa asserção ignora dois fatos.
Primeiro, a consideração dos objetivos da República e da ordem econômica, estipulados nos artigos 3º e 170 da Constituição, respectivamente, permite identificar na promoção do bem-estar social o fim último da ação do Estado na economia.
Observada esta finalidade, a Carta Maior admite diferentes configurações para o exercício da política econômica, não obrigando a que se situe integralmente na alçada do presidente da República. Dessa forma, faculta ao legislador alocar tais elementos a outros entes administrativos, tal como ao atribuir a política monetária ao BCB ou a regulação de setores da economia às agências reguladoras [11].
Segundo, o Poder Executivo está sujeito à vontade do legislador, e não o contrário. E é para impedir que os seus eventuais interesses de curto prazo se sobreponham aos objetivos constitucionais de longo prazo que o legislador destaca a política monetária do restante da política econômica a cargo do governo e a atribui ao BCB, recobrindo-o das salvaguardas que compõem a sua autonomia.
A principal consequência da decisão do legislador de atribuir a condução da política monetária ao BCB, com o objetivo de controlar a inflação, é a de vincular toda a administração pública a cooperar para o seu sucesso.
Daí decorre que o governo deve coordenar a política fiscal à política monetária. Incumbe-lhe também o ônus de absorver os eventuais prejuízos do BCB ao cumprir o seu mandato, em contrapartida ao bônus de se apropriar do seu lucro, como visto adiante.
A autonomia dos BCs possui quatro vertentes: institucional, pessoal, orçamentária e financeira.
A vertente institucional corresponde ao poder dos BCs de organizar os seus serviços da maneira mais adequada para desempenhar as suas funções.
À luz do Direito brasileiro, a autonomia institucional implica na ausência de subordinação e de tutela administrativa. Por ser autarquia, o BCB já estava isento de subordinação administrativa antes da LC 179. Com o advento desta, passou a estar isento também da tutela funcional do Ministério da Fazenda.
Permaneceu, contudo, vinculado à administração central em matéria de gestão, o que lhe acarreta inúmeras restrições. Por todas, pode-se mencionar a necessidade de aprovação do governo para realizar concursos públicos e nomear os aprovados.
Alguns consideram que uma autarquia sem tutela ministerial é anômala na estrutura administrativa brasileira, estando desprovida de vinculação e controle [12].
É fato que a desvinculação do BCB da tutela do Ministério da Fazenda constitui inovação em relação à estrutura administrativa desenhada há quase 60 anos no Decreto-Lei 200, de 1967.
Desde então, porém, a evolução da economia e das finanças e das práticas administrativas nacionais e internacionais impuseram atualização constante à organização administrativa brasileira. Talvez o exemplo mais marcante tenha sido o advento das agências reguladoras nos anos 90.
Apesar da sua inspiração nas agências governamentais americanas, o modelo institucional adotado no Brasil para as agências reguladoras não chegou ao ponto de isentá-las do vínculo com a administração central.
Foram necessários 25 anos de amadurecimento para que o legislador então julgasse oportuno avançar nessa direção, afastando a tutela ministerial sobre o BCB e equiparando-o, neste ponto, ao seu homólogo americano, o Conselho da Reserva Federal.
Ademais, a ausência de vinculação ministerial não significa a inexistência de controles. BCs autônomos prestam contas à sociedade e aos poderes constituídos mediante auditorias independentes, relatórios periódicos e audiências públicas dos seus dirigentes, mecanismos aos quais o BCB também está sujeito.
Além disso, o BCB submete-se ao controle externo do Congresso, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União, e da Presidência da República, mediante a Controladoria-Geral da União. Devido à vinculação e à composição política desses órgãos, o ideal seria mesmo que o BCB estivesse alheio à sua esfera de atuação.
A autonomia tampouco constitui empecilho à cooperação com o governo. Ao contrário, é aconselhável que a lei preveja mecanismos de colaboração, tais como reuniões periódicas e processos e sistemas permanentes de intercâmbio de informações entre os BCs e os ministério de finanças.
A vertente pessoal da autonomia cuida de salvaguardar os dirigentes dos BCs de interferências indevidas quer da esfera política quer da privada.
Essas proteções incluem o duplo veto na sua nomeação, de forma a proporcionar freios e contrapesos entre os Poderes políticos. A nomeação pode ficar a cargo do chefe de governo, após a aprovação do Legislativo, como no caso brasileiro.
Ademais, os dirigentes possuem mandatos fixos e não coincidentes entre si ou com o mandato da autoridade nomeante, podendo ser exonerados apenas nas hipóteses previstas em lei, observado o contraditório e a ampla defesa. Possuem também capacitação, idoneidade e isenção para o exercício das suas funções.
A autonomia compreende também aspectos orçamentários e financeiros.
BCs autônomos elaboram o seu próprio orçamento, sem a aprovação do governo, e executam as suas despesas sob a supervisão da função de auditoria interna.
Observam também os padrões internacionais na sua escrituração contábil e no preparo das suas demonstrações financeiras, as quais se sujeitam à auditoria interna e à auditoria externa independente.
O seu capital é totalmente subscrito e integralizado pelo Tesouro, no caso dos BCs integralmente estatais, e a sua preservação está amparada em reservas contábeis, incluindo de ganhos não realizados, e de apuração e distribuição de resultados.
O lucro apurado pertence integralmente ao Estado. Em contrapartida, este recapitaliza o BC em caso de prejuízos que reduzam o capital a nível crítico.
Os BCs estão proibidos de conceder empréstimos ao Tesouro para evitar o descontrole da emissão monetária e, por consequência, da política de juros. Essa vedação alcança a subscrição primária de títulos públicos, mas não as compras efetuadas no mercado secundário, as chamadas operações compromissadas.
Outra noção corrente é a de que os BCs autônomos não devem ter prejuízos, ou, se tiverem, que o Tesouro não deve cobri-los [13]. Ideia relacionada é a de que os BCs devem sujeitar-se ao governo porque a política de juros afeta a dívida pública.
Como visto, a força legal do mandato dos BCs produz efeitos sobre o restante da administração pública, vinculando-a a cooperar para o seu cumprimento. Disso decorre o dever do Tesouro de absorver eventuais prejuízos deles decorrentes.
Ademais, os BCs não são concebidos para dar lucro, podendo funcionar mesmo apresentando prejuízo ou capital negativo [14]. De fato, os prejuízos, por vezes, são o preço a pagar pela estabilidade monetária e financeira. Não há como os ignorar devido ao seu impacto sobre as finanças públicas. Contudo, o social seria ainda maior se os BCs negligenciassem os seus mandatos para os evitar [15].
Conclusão
BCs que desfrutam de uma estrutura institucional adequada têm mais sucesso no cumprimento do seu mandato de controle da inflação e estabilidade financeira [16]. Provindo das economias mais exitosas em promover o bem-estar social, as linhas mestras neste tema deveriam ser vistas como inspiração, e não com desconfiança.
Felizmente, o legislador brasileiro tem avançado no sentido de dotar o BCB de um regime jurídico alinhado com o estado-da-arte da matéria. O reconhecimento dos seus pares atesta o seu sucesso.[17] Apesar das suas ressalvas, a PEC 65 tem o mérito de manter acesso o debate público que eventualmente conduzirá ao regime ideal.
[1] Jefferson Alvares, PEC da autonomia do BC falha nas suas boas intenções, Jota, 4 março 2024.
[2] David Bholat & Karla Gutierrez, The ownership of central banks, Bank Underground, 18 out. 2019.
[3] Id.
[4] Id.
[5] Barry Eichengreen & Bernhard Bartels, No smoking gun: Private shareholders, governance rules, and central bank financial behavior, VoxEU, 14 nov. 2016.
[6] Id.
[7] Marco Bonomo et al., Abrupt Monetary Policy Change and Unanchoring of Inflation Expectations, SSRN, março 2024.
[8] José Serra, Autonomia do BC ou quimera do quarto Poder?, O Estado de S.Paulo, 12 abril 2024.
[9] Id.
[10] Cesar Locatelli, Por que mudar regime jurídico do Banco Central?, Jornal GGN, 3 dez. 2023.
[11] Foi o que reconheceu o STF ao julgar a ADI 6.696.
[12] Lênio Streck, A autonomia do Banco Central é compatível com a Constituição?, ConJur, 14 abril 2024.
[13] Gilberto Côrtes, A independência do BC pródigo, Jornal do Brasil, 31 março 2024.
[14] Agustín Carstens, Central banks are not here to make profits, 7 fev. 2023.
[15] Id.
[16] Kristalina Georgieva, Strengthen Central Bank Independence to Protect the World Economy, IMF Blog, 21 março 2024.
[17] Christopher Jeffery et al., Central bank of the year: Central Bank of Brazil, Central Banking, 12 março 2024.
Comments