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Lastro bancário é a armadilha das stablecoins

  • Foto do escritor: Jeff Alvares
    Jeff Alvares
  • 21 de ago.
  • 4 min de leitura
Na Era da Banca Livre nos Estados Unidos (1837-1863), os bancos privados podiam emitir as suas próprias notas de dólar, gerando um sistema monetário fragmentado, em que notas de diferentes bancos circulavam com deságio variável.
Na Era da Banca Livre nos Estados Unidos (1837-1863), os bancos privados podiam emitir as suas próprias notas de dólar, gerando um sistema monetário fragmentado, em que notas de diferentes bancos circulavam com deságio variável.

Por Jefferson Alvares


No afã de integrar as stablecoins ao sistema financeiro, os reguladores globais parecem estar ignorando lições fundamentais da história monetária. A União Europeia, com o regulamento MiCA, e os Estados Unidos, com a lei Genius, permitem que esses ativos digitais, que prometem conversibilidade em moedas soberanas, sejam lastreados por depósitos em bancos comerciais. À primeira vista, a proposta parece sensata -- atrelar a inovação tecnológica ao sistema bancário tradicional --, mas esconde uma falha estrutural que compromete a estabilidade pretendida.


As stablecoins são ofertadas como instrumentos de valor estável: cada unidade pode ser convertida à vista por um dólar, euro ou real. Contudo, os depósitos bancários que lhes podem servir de lastro são inerentemente instáveis, já que os bancos operam com reservas fracionárias; isto é, mantêm em caixa apenas parte dos recursos captados para fazer frente às ordens de saque previsíveis, alocando o restante para empréstimos. Ao ancorar o seu valor nesses depósitos, as stablecoins replicam o mesmo descasamento de liquidez entre ativo e passivo que está na raiz das corridas bancárias.


O risco não é apenas teórico. Em março de 2023, a falência do Silicon Valley Bank (SVB) levou a USD Coin (USDC), segunda maior stablecoin global, a perder a paridade com o dólar. A Circle, sua emissora, mantinha US$ 3,3 bilhões no SVB. O colapso deste provocou uma corrida por resgates. A situação só foi contida porque o governo americano garantiu todos os depósitos do banco. Apesar da sua volatilidade característica, a instabilidade não se originou no mercado de cripto ativos, mas no sistema bancário. Ainda assim, a Circle segue mantendo bilhões de dólares em bancos comerciais.


O problema transcende o mercado de cripto ativos. As stablecoins desempenham função crescente nos pagamentos internacionais e no mercado financeiro. O seu valor de mercado ultrapassa US$ 250 bilhões, impulsionado pela adoção por empresas e instituições financeiras. Se mal estruturados, esses ativos podem amplificar os riscos para o sistema financeiro. Em períodos de estresse bancário, os seus detentores podem resgatá-los em massa, intensificando a pressão sobre a liquidez dos bancos depositários das suas reservas. O efeito seria uma corrida bancária dupla, com depositantes e titulares de stablecoins disputando recursos bancários limitados, tal como no caso do SVB.


Confiar que os mecanismos de garantia de depósitos e de assistência de liquidez do Fundo Garantidor de Créditos e do Banco Central bastariam para conter uma crise sistêmica seria uma aposta perigosa. Ancorar a regulação nessa premissa seria mais uma vez socializar os riscos da atividade privada, como ocorre com as instituições “too big to fail” do sistema financeiro tradicional.


O modelo atual das stablecoins ecoa a experiência da Era da Banca Livre nos Estados Unidos (1837-1863), quando bancos privados podiam emitir as suas próprias notas de dólar, lastreadas em ativos definidos por lei estadual. Na prática, o cumprimento do dever de lastro era precário e a fiscalização, ineficaz. Dessa confluência de fatores resultou um sistema monetário fragmentado, em que notas de diferentes bancos circulavam com deságio variável, conforme a qualidade do emissor.


Para orientar o público, surgiram publicações especializadas em listar as centenas de cédulas em circulação e a sua cotação relativa -- as Bank Note Reporters. Naquele sistema, a moeda não atendia ao princípio da unicidade de valor. O mesmo risco ronda as stablecoins. Respaldar o seu valor em depósitos bancários levaria a um sistema onde nem todos os dólares, euros ou reais valeriam a mesma coisa, e cuja estabilidade dependeria, em última análise, da garantia do Erário.


Os formuladores de políticas têm diante de si escolha decisiva. O caminho mais fácil seria permitir que stablecoins se respaldem em depósitos bancários frágeis, recriando, no mundo digital, o mesmo descasamento de liquidez que assombra o sistema bancário há séculos

Uma regra básica de finanças é que o ativo dado em garantia deve ser mais líquido e seguro do que a obrigação garantida. Isso significa que, para honrar a promessa de conversibilidade, as stablecoins devem ser lastreadas nos ativos de maior liquidez e menor risco de crédito da economia: reservas junto ao banco central (quando o emissor for um banco) ou títulos públicos de curtíssimo prazo. Títulos de prazo longo ou privados não têm perfil adequado para lastrear obrigações à vista. A crise dos fundos do mercado monetário pós-Lehman Brothers demonstrou esse fato à exaustão.


Líder em inovação em pagamentos com o Pix, e à frente no desenvolvimento da sua moeda soberana digital (o Drex), o Brasil tem a chance de estabelecer o padrão-ouro global para a regulação de stablecoins. A regulamentação da lei de ativos virtuais pode adotar um modelo que priorize a segurança e a liquidez dos ativos de reserva, evitando o equívoco de outros reguladores.


Com a crescente regionalização do real e o avanço do Drex, podemos construir um sistema monetário para a era digital que conjugue a segurança da moeda estatal e a inovação privada. Ao tempo em que protegeria o sistema financeiro nacional, esta abordagem fomentaria a concorrência entre meios de pagamento e fortaleceria a posição do real no sistema monetário internacional.


Os formuladores de políticas públicas encontram-se diante de uma escolha decisiva. Podem optar pelo caminho fácil, permitindo que as stablecoins se respaldem em depósitos bancários frágeis e recriando, no mundo digital, o mesmo descasamento de liquidez que assombra o sistema bancário há séculos. Ou podem estabelecer padrões mais rigorosos, exigindo que esses ativos aspirantes ao status de “moeda” tenham garantias compatíveis com a confiança que desejam inspirar.


A Era do Free Banking serve de alerta, não de modelo. O sistema monetário da era digital não deve repousar sobre as bases instáveis do passado. O Brasil está diante de uma oportunidade rara de liderar esse debate com responsabilidade e visão estratégica. Tanto o potencial quanto os riscos da tecnologia de registros decentralizados são grandes demais para nos darmos ao luxo de errar.


Jefferson Alvares é procurador do Banco Central do Brasil. Foi advogado do Fundo Monetário Internacional e membro do Secretariado do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB). Escreve em caráter pessoal.


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