Lastro bancário é a armadilha das stablecoins
- Jeff Alvares

- 21 de ago.
- 4 min de leitura

Por Jefferson Alvares
No afã de integrar as stablecoins ao sistema financeiro, os reguladores globais parecem estar ignorando lições fundamentais da história monetária. A União Europeia, com o regulamento MiCA, e os Estados Unidos, com a lei Genius, permitem que esses ativos digitais, que prometem conversibilidade em moedas soberanas, sejam lastreados por depósitos em bancos comerciais. À primeira vista, a proposta parece sensata -- atrelar a inovação tecnológica ao sistema bancário tradicional --, mas esconde uma falha estrutural que compromete a estabilidade pretendida.
As stablecoins são ofertadas como instrumentos de valor estável: cada unidade pode ser convertida à vista por um dólar, euro ou real. Contudo, os depósitos bancários que lhes podem servir de lastro são inerentemente instáveis, já que os bancos operam com reservas fracionárias; isto é, mantêm em caixa apenas parte dos recursos captados para fazer frente às ordens de saque previsíveis, alocando o restante para empréstimos. Ao ancorar o seu valor nesses depósitos, as stablecoins replicam o mesmo descasamento de liquidez entre ativo e passivo que está na raiz das corridas bancárias.
O risco não é apenas teórico. Em março de 2023, a falência do Silicon Valley Bank (SVB) levou a USD Coin (USDC), segunda maior stablecoin global, a perder a paridade com o dólar. A Circle, sua emissora, mantinha US$ 3,3 bilhões no SVB. O colapso deste provocou uma corrida por resgates. A situação só foi contida porque o governo americano garantiu todos os depósitos do banco. Apesar da sua volatilidade característica, a instabilidade não se originou no mercado de cripto ativos, mas no sistema bancário. Ainda assim, a Circle segue mantendo bilhões de dólares em bancos comerciais.
O problema transcende o mercado de cripto ativos. As stablecoins desempenham função crescente nos pagamentos internacionais e no mercado financeiro. O seu valor de mercado ultrapassa US$ 250 bilhões, impulsionado pela adoção por empresas e instituições financeiras. Se mal estruturados, esses ativos podem amplificar os riscos para o sistema financeiro. Em períodos de estresse bancário, os seus detentores podem resgatá-los em massa, intensificando a pressão sobre a liquidez dos bancos depositários das suas reservas. O efeito seria uma corrida bancária dupla, com depositantes e titulares de stablecoins disputando recursos bancários limitados, tal como no caso do SVB.
Confiar que os mecanismos de garantia de depósitos e de assistência de liquidez do Fundo Garantidor de Créditos e do Banco Central bastariam para conter uma crise sistêmica seria uma aposta perigosa. Ancorar a regulação nessa premissa seria mais uma vez socializar os riscos da atividade privada, como ocorre com as instituições “too big to fail” do sistema financeiro tradicional.
O modelo atual das stablecoins ecoa a experiência da Era da Banca Livre nos Estados Unidos (1837-1863), quando bancos privados podiam emitir as suas próprias notas de dólar, lastreadas em ativos definidos por lei estadual. Na prática, o cumprimento do dever de lastro era precário e a fiscalização, ineficaz. Dessa confluência de fatores resultou um sistema monetário fragmentado, em que notas de diferentes bancos circulavam com deságio variável, conforme a qualidade do emissor.
Para orientar o público, surgiram publicações especializadas em listar as centenas de cédulas em circulação e a sua cotação relativa -- as Bank Note Reporters. Naquele sistema, a moeda não atendia ao princípio da unicidade de valor. O mesmo risco ronda as stablecoins. Respaldar o seu valor em depósitos bancários levaria a um sistema onde nem todos os dólares, euros ou reais valeriam a mesma coisa, e cuja estabilidade dependeria, em última análise, da garantia do Erário.
Os formuladores de políticas têm diante de si escolha decisiva. O caminho mais fácil seria permitir que stablecoins se respaldem em depósitos bancários frágeis, recriando, no mundo digital, o mesmo descasamento de liquidez que assombra o sistema bancário há séculos
Uma regra básica de finanças é que o ativo dado em garantia deve ser mais líquido e seguro do que a obrigação garantida. Isso significa que, para honrar a promessa de conversibilidade, as stablecoins devem ser lastreadas nos ativos de maior liquidez e menor risco de crédito da economia: reservas junto ao banco central (quando o emissor for um banco) ou títulos públicos de curtíssimo prazo. Títulos de prazo longo ou privados não têm perfil adequado para lastrear obrigações à vista. A crise dos fundos do mercado monetário pós-Lehman Brothers demonstrou esse fato à exaustão.
Líder em inovação em pagamentos com o Pix, e à frente no desenvolvimento da sua moeda soberana digital (o Drex), o Brasil tem a chance de estabelecer o padrão-ouro global para a regulação de stablecoins. A regulamentação da lei de ativos virtuais pode adotar um modelo que priorize a segurança e a liquidez dos ativos de reserva, evitando o equívoco de outros reguladores.
Com a crescente regionalização do real e o avanço do Drex, podemos construir um sistema monetário para a era digital que conjugue a segurança da moeda estatal e a inovação privada. Ao tempo em que protegeria o sistema financeiro nacional, esta abordagem fomentaria a concorrência entre meios de pagamento e fortaleceria a posição do real no sistema monetário internacional.
Os formuladores de políticas públicas encontram-se diante de uma escolha decisiva. Podem optar pelo caminho fácil, permitindo que as stablecoins se respaldem em depósitos bancários frágeis e recriando, no mundo digital, o mesmo descasamento de liquidez que assombra o sistema bancário há séculos. Ou podem estabelecer padrões mais rigorosos, exigindo que esses ativos aspirantes ao status de “moeda” tenham garantias compatíveis com a confiança que desejam inspirar.
A Era do Free Banking serve de alerta, não de modelo. O sistema monetário da era digital não deve repousar sobre as bases instáveis do passado. O Brasil está diante de uma oportunidade rara de liderar esse debate com responsabilidade e visão estratégica. Tanto o potencial quanto os riscos da tecnologia de registros decentralizados são grandes demais para nos darmos ao luxo de errar.
Jefferson Alvares é procurador do Banco Central do Brasil. Foi advogado do Fundo Monetário Internacional e membro do Secretariado do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB). Escreve em caráter pessoal.





Comentários