O Banco Central depois da LCP 179/2021: arcabouço legislativo e estrutura jurídica
- Jeff Alvares
- 2 de jun.
- 8 min de leitura

A Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021 (LCP 179), alterou a legislação de regência do Banco Central do Brasil (BCB) no que diz respeito a mandato, governança, autonomia e transparência, no intuito de aproximar seu desenho institucional das melhores práticas internacionais. Essa é a reforma mais significativa do arcabouço legislativo do BCB desde sua criação, pela Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (Lei 4.595).
Concebido originalmente como executor das políticas do governo no âmbito monetário e no setor financeiro, o BCB passa a dispor de objetivos estatutários próprios, com vista aos quais deve exercer suas funções. Além disso, para dar efetividade à persecução de seus objetivos, desfruta agora de proteções ao exercício autônomo de suas funções, sujeitando-se, como contrapartida, a deveres de transparência mais estritos.
Este é o primeiro de uma série de artigos destinados a avaliar o alinhamento do regime legal do BCB resultante das alterações empreendidas pela LCP 179 às melhores práticas internacionais. De caráter introdutório, discute o arcabouço legislativo do BCB em face da organização típica das leis orgânicas de bancos centrais e analisa a estrutura jurídica da autoridade monetária.
Os artigos seguintes abordarão os seguintes temas: mandato, nomeadamente objetivos, funções, poderes gerais e vedações; governança, isto é, a organização dos órgãos de direção e de controle interno; autonomia, incluindo as dimensões funcional, pessoal (nomeação, elegibilidade, e desempenho e cessão do mandato) e financeira (capital, reservas, orçamento, conta do Tesouro e assistência de liquidez); e transparência, compreendendo prestação de contas e demonstrações financeiras.
As leis orgânicas de bancos centrais e o arcabouço legislativo do BCB
A lei orgânica é o instrumento normativo fundamental dos bancos centrais, disciplinando sua estrutura jurídica, mandato, governança, autonomia e transparência. Na prática internacional, existem orientações sobre sua organização e seu conteúdo ideais. Tais orientações decorrem primordialmente de recomendações formuladas por entidades voltadas à padronização do sistema monetário e financeiro internacional.
Na ausência de recomendações explícitas, serve como orientação o entendimento dominante sobre as melhores práticas. Esse entendimento é difuso e informal. Resulta primordialmente da atuação de organizações internacionais, com destaque para o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, e de entidades nacionais de cooperação na avaliação dos sistemas monetário e financeiro nacionais, na formulação de condicionalidade para o fornecimento de assistência financeira, e na prestação de assistência técnica para a reforma legislativa. Tendem a figurar entre as fontes das melhores práticas os bancos centrais das economias mais ricas, percebidos como exitosos no cumprimento de seus objetivos.
O BCB, ao lado da Autoridade Monetária de Hong Kong, é o único banco central entre as 29 economias portadoras de sistemas financeiros sistemicamente importantes – as quais se sujeitam periodicamente ao Programa de Avaliação do Setor Financeiro, conduzido pelo FMI e pelo Banco Mundial – que não se rege por uma lei orgânica. A Lei 4.595, sua lei fundamental, dispõe sobre alguns dos temas típicos das leis orgânicas, mas sem os esgotar, ao passo em que disciplina assuntos estranhos à organização do BCB, tais como a composição e as competências do Conselho Monetário Nacional (CMN) e certos aspectos das atividades das instituições financeiras. Outras leis vieram somar-se à Lei 4.595, resultando num arcabouço legislativo fragmentado.
A opção por não disciplinar o BCB em legislação exclusiva justifica-se pelo desenho institucional em que a autoridade monetária originalmente se inseria. O objeto da Lei 4.595 era o sistema financeiro nacional, no qual o BCB figurava sem destaque. Nesse desenho, a “política da moeda e do crédito” (em linguagem atual, a política monetária) e a “fiscalização” (em linguagem atual, a supervisão) de instituições financeiras eram concebidas como competência do governo, compartida entre CMN, BCB e Banco do Brasil (BB).
O CMN estava a cargo de sua formulação, ficando o BCB responsável por sua execução, coadjuvado pelo BB. O advento de diplomas normativos como a Constituição de 1988 e a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (a Lei de Responsabilidade Fiscal), levou à atualização desse desenho, com a atribuição progressiva ao BCB de autonomia sobre a formulação e a execução da política monetária e da supervisão financeira, além da ampliação do leque de funções sob sua competência.
Esse processo de atualização culminou na promulgação da LCP 179, ampliando a autonomia do BCB tanto para formular como para executar as políticas sob sua alçada.
Neste e nos próximos artigos, a análise da legislação de regência do BCB seguirá a organização temática padrão das leis orgânicas de bancos centrais, o que evidenciará a conveniência de se dotar a autoridade monetária brasileira de um diploma de regência exclusivo.
Estrutura jurídica
A lei orgânica de qualquer banco central deve conter dispositivos introdutórios disciplinando sua estrutura jurídica. Essa disciplina deve abranger a definição de sua natureza jurídica, pública ou privada; dos locais de sua sede e de suas filiais; dos poderes compreendidos em sua capacidade de agir; das fontes normativas a ele aplicáveis; e da abrangência de sua autonomia institucional.
A capacidade jurídica deve possibilitar adquirir propriedade, celebrar contratos e ser parte em litígios judiciais. Já a autonomia deve vir expressa na proibição a que o banco central atue segundo instruções recebidas de terceiros, dos setores público ou privado, bem como a que terceiros procurem influenciar indevidamente suas atividades. A lei orgânica deve também possuir estabilidade diante dos humores da conjuntura política. Caso constitucionalmente viável, a própria lei pode estipular sua supremacia sobre a legislação ordinária ou determinar a necessidade de consulta prévia ao banco central para sua alteração ou para a adoção de legislação correlata.
A Lei 4.595 define o BCB como autarquia federal, dotada de personalidade jurídica e patrimônio próprios, com sede na capital federal e delegacias nas diferentes regiões geoeconômicas do país, instaladas sob autorização do CMN. Sendo autarquia, sua natureza jurídica pública dispensa menção expressa. Também dispensam estipulação explícita os poderes decorrentes de sua capacidade de agir, uma vez que são inerentes à personalidade jurídica as faculdades necessárias para atuar como sujeito de direitos e deveres, contratando, adquirindo propriedade e litigando em juízo.
Já no que tange às representações regionais, a submissão de sua instalação à aprovação do CMN constitui limitação injustificável à autonomia administrativa ínsita às entidades autárquicas, ainda menos justificável em vista da ampliação da autonomia do BCB promovida pela LCP 179. A remoção dessa limitação à autonomia plena da autoridade monetária é altamente recomendável, assim como a de outras que porventura persistam no ordenamento.
A LCP 179 acrescenta à condição autárquica do BCB a natureza especial, explicitando a ausência de subordinação hierárquica, como é típico da administração descentralizada, e afastando sua vinculação ministerial e submissão à tutela administrativa, o que caracteriza a especialidade de sua natureza. A ausência de vinculação e de tutela ministerial confere ao BCB existência autônoma no interior da administração pública, à semelhança das agências estatais (government agencies) americanas, de que é exemplo o Conselho da Reserva Federal, entidade central do Sistema da Reserva Federal, o banco central americano.
Neste aspecto, o BCB goza de maior autonomia formal do que as agências reguladoras brasileiras, as quais possuem vínculo ministerial, embora não se sujeitem à tutela administrativa. Isso não significa que o BCB esteja isento de controles pelos órgãos dotados de legitimidade política. Ocorre que tais controles estão concebidos de forma a preservar sua autonomia material, para além da formal, como se verá em artigo futuro.
Como corolário da ausência de subordinação hierárquica, a LCP 179 declara que o BCB dispõe de autonomia administrativa, financeira, operacional e técnica, como é característico das entidades descentralizadas. Embora tal declaração de autonomia seja bem-vinda, sua efetividade depende do estabelecimento de salvaguardas do ponto de vista funcional, pessoal e financeiro.
A existência e a extensão dessas salvaguardas serão analisadas em artigo vindouro. Por ora, é suficiente notar que a LCP 179 busca conferir efeitos práticos à ausência de vinculação e de tutela ministerial estipulando que os dirigentes do BCB desfrutam de estabilidade durante seus períodos de investidura. Entretanto, deixa de proibir expressamente que aceitem instruções externas, bem como que agentes externos interferiram em suas atividades de maneira indevida.
No que diz respeito às fontes normativas aplicáveis ao BCB, a LCP 179 restringe-as a si própria e às leis específicas “destinadas à sua implementação”, desconsiderando a Lei 4.595 e demais leis precedentes e prevendo implicitamente que sua implementação ocorra por lei ordinária.
O primeiro ponto trata-se de mero lapso de linguagem, haja vista a ausência de revogação expressa da totalidade da legislação precedente. Assim, o arcabouço legislativo do BCB consiste na LCP 179 e nas leis precursoras que com ela não conflitem e que não tenham sido revogadas expressamente.
Já quanto à referência à “implementação” – isto é, execução ou regulamentação – da LCP 179 por leis específicas, cuida-se de grave incompreensão do ordenamento constitucional. Com efeito, a lei ordinária e a lei complementar não guardam entre si relação de hierarquia, mas sim de horizontalidade temática, destinando-se à disciplina das matérias que lhe são acometidas pela Constituição Federal. A atribuição de matérias à lei complementar é específica, como ocorre com a disciplina do sistema financeiro nacional, por força do artigo 192 da Constituição Federal, que serve de fundamento à LCP 179.
Já no caso da lei ordinária, seu âmbito de eficácia material é subsidiário, verificando-se quando não haja reserva de lei complementar. Logo, uma lei ordinária que dispusesse de maneira primária sobre matéria reservada à lei complementar incorreria em inconstitucionalidade. O mesmo ocorreria se dispusesse de maneira secundária, executando ou regulamentando a lei complementar. Neste caso, os instrumentos adequados seriam o decreto presidencial, nos limites previstos na Constituição Federal, ou o ato administrativo de entidade, órgão ou agente público ao qual a lei complementar outorgasse poder regulamentar ou executório.
Sob o aspecto da estabilidade, a veiculação do ordenamento de regência do BCB em lei complementar confere-lhe durabilidade maior do que se estivesse contido em legislação ordinária. Tal durabilidade decorre do quórum de maioria absoluta necessário à aprovação da lei complementar, em oposição à maioria relativa necessária no caso da lei ordinária. Some-se a isso o fato de que a legislação complementar não pode ser alterada pela legislação ordinária, em virtude de seus distintos âmbitos de eficácia material, como anteriormente exposto.
A LCP 179 vem somar-se ao arcabouço legislativo fragmentado do BCB, o qual destoa do ordenamento de regência dos bancos centrais das demais economias dotadas de sistemas financeiros sistemicamente importantes, os quais se regem por leis orgânicas. Sem embargo, a nova lei confere ao BCB natureza jurídica adequada para amparar o exercício autônomo de suas funções nos moldes preconizados pelas melhores práticas internacionais.
A efetividade desse regime depende da presença de salvaguardas que deem materialidade às declarações formais de autonomia da lei. Não obstantes os avanços, é possível diagnosticar que o ordenamento jurídico submete a faculdade do BCB de criar representações territoriais ao crivo do CMN e silencia sobre a proibição de receber instruções externas e de que agentes externos o influenciem indevidamente.
A exigência implícita de implementação da LCP 179 por lei ordinária pode criar embaraço à sua eficácia. Do ponto de vista constitucional, a regulamentação e a execução da LCP 179 estão a cargo do Poder Executivo, seja por decreto presidencial, em decorrência direta do texto constitucional, ou por ato administrativo, em virtude da atribuição de competência legal. Contudo, diante da presunção de sua constitucionalidade, é possível que o Poder Executivo se abstenha de implementá-la, à espera da lei ordinária.
Nesse caso, não só se sujeitará à lentidão e politização do processo legislativo, como correrá o risco de ver a lei ordinária resultante questionada por afronta à reserva de lei complementar. Alternativamente, poderá optar por contestar a constitucionalidade da LCP 179 ou requerer sua interpretação conforme à Constituição Federal, de modo a permitir sua implementação por ato infralegal, o que também acarretará custos de agilidade e políticos.
Ante o exposto, recomendam-se as seguintes medidas para o aperfeiçoamento do arcabouço legislativo e da estrutura jurídica do BCB: a) a consolidação de sua legislação de regência em lei orgânica exclusiva; b) a remoção da necessidade de autorização do CMN para a instalação de delegacias regionais; c) a estipulação de proibição expressa a que o BCB receba instruções externas, bem como a que agentes externos o influenciem indevidamente; e d) a exclusão da referência do artigo 6º da LCP 179 “a leis específicas destinadas à sua implementação”.
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