Poderes macroprudenciais para o BC, um avanço necessário
- Jeff Alvares

- 30 de jun.
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A imprensa tem noticiado que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65, que transforma o Banco Central do Brasil (BC) em empresa pública, poderá conferir à autarquia competências prudenciais sobre os mercados de valores mobiliários, seguros e Previdência complementar, além do setor bancário. Ao que tudo indica, a ideia não é transferir a supervisão das entidades desses setores, mas atribuir ao BC poderes de vigilância macroprudencial, voltados à estabilidade do sistema financeiro como um todo.
A mudança seria bem-vinda, mas exigiria cautela jurídica e institucional. Conferir ao BC essa nova missão requer um quadro legal específico, compatível com a natureza eminentemente técnica e evolutiva do tema. A rigidez do texto constitucional é adequada às normas de organização cívico-políticas, que requerem maior estabilidade, mas não àquelas sujeitas às oscilações conjunturais da atividade financeira.
Em 2011, quando o mundo ainda discutia os impactos da crise financeira global e as reformas regulatórias emergentes, publiquei dois artigos neste jornal chamando a atenção para a ausência de um arcabouço macroprudencial efetivo na nossa estrutura regulatória. O diagnóstico de então permanece atual: o Brasil carece de uma arquitetura.
A crise de 2008 revelou a insuficiência do modelo tradicional de supervisão financeira microprudencial, centrado na segurança e solidez de instituições isoladas. Sistemas financeiros sofisticados desconhecem a divisão outrora marcante entre os setores bancário, de capitais e securitário. Bancos, corretoras de valores e seguradoras mutualizam riscos no interior de conglomerados, utilizam os mesmos instrumentos contratuais, compartilham infraestruturas operacionais e ofertam produtos híbridos, o que os expõe a riscos comuns por mecanismos de interconexão, correlação e contágio.
A resposta regulatória pós-crise orientou-se no sentido de identificar e reagir às ameaças resultantes da interação entre os diversos componentes do mercado financeiro - empresas, instrumentos, infraestruturas e produtos. As autoridades passaram a mapear as conexões entre os nós da rede financeira e a desenvolver instrumentos para evitar o acúmulo excessivo de riscos, a exemplo das regras de capital e de liquidez de Basileia III.
Do ponto de vista estrutural, as reformas incluíram a criação de órgãos de vigilância sistêmica, consagrando dois modelos. Os Estados Unidos e a Europa criaram estruturas de cúpula transversais aos segmentos financeiros tradicionais, com mandato legal para identificar ameaças sistêmicas e coordenar a resposta dos supervisores setoriais - o Financial Stability Oversight Council e o European Systemic Risk Board, respectivamente. Já o Reino Unido conferiu competência macroprudencial ao Financial Policy Committee (FPC) do Banco da Inglaterra (BoE), com poderes para emitir diretivas às autoridades prudencial e de condutas - no modelo regulatório conhecido como twin peaks.
No Brasil, a tarefa de manter a estabilidade financeira divide-se setorialmente entre BC, CVM, Susep e Previc e concentra-se na prevenção e mitigação de riscos de origem idiossincrática. Nenhum dos supervisores é responsável pela supervisão unificada do mercado e inexistem mecanismos legais de resposta conjunta a ameaças sistêmicas.
Até aqui, portanto, o processo de adaptação da estrutura regulatória brasileira para o padrão macroprudencial foi conduzido dentro das limitações da moldura legal existente.
Em 2006, antes mesmo da crise global, as autoridades brasileiras buscaram mitigar a fragmentação da supervisão setorial com a criação do Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, de Seguros, de Previdência e Capitalização (Coremec). Apesar de meritória, a iniciativa revelou-se limitada, já que o Coremec é apenas um foro de coordenação, sem poderes legais para requisitar informações, emitir recomendações vinculantes ou impor requerimentos regulatórios.
Em 2011, inspirado pelo FPC inglês, o BC instituiu o Comitê de Estabilidade Financeira (Comef), encarregado de avaliar riscos ao sistema e propor estratégias de mitigação. Contudo, a atuação do Comef restringe-se ao perímetro de supervisão do BC, sem dispor do escopo transversal dos modelos institucionais consagrados na prática internacional. Além disso, a sua composição replica a da diretoria da autarquia, que inclui membros sem a expertise necessária. Para comparar, apenas os diretores das áreas relevantes do BoE integram o FPC, ao lado de especialistas externos, em igual número.
O BC é, de fato, a entidade melhor posicionada para exercer funções macroprudenciais, em virtude da sua capacidade técnica e do seu acesso privilegiado a informações de mercado no exercício das funções de autoridade monetária e de supervisor bancário. Mas esse papel precisa ser delineado e legitimado por lei formal. Uma PEC destinada a transformar o BC em empresa pública não substitui o trabalho legislativo necessário para construir um quadro regulatório adequado. A política macroprudencial exige base legal específica, governança sólida, instrumentos eficazes e mecanismos de prestação de contas incompatíveis com o caráter principiológico dos dispositivos constitucionais.
É compreensível que o Brasil tenha evitado reformas estruturais profundas na esteira da crise de 2008, já que os fatores de risco então identificados não se manifestaram com igual força no nosso sistema financeiro. Mas o tempo passou, o sistema evoluiu - e os riscos também. Esperar por nova crise para agir pode custar caro.
Conceder poderes macroprudenciais ao BC é, portanto, mais do que uma atualização institucional. Trata-se de uma decisão estratégica, que posicionará o Brasil entre os países que optaram por prevenir instabilidades sistêmicas, em vez de apenas reagir a elas. Que essa escolha se dê com rigor técnico, maturidade jurídica e senso de urgência.
Jefferson Alvares é procurador do Banco Central e mestre por Harvard. Foi advogado do Fundo Monetário Internacional e membro do secretariado do Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board). Escreve em caráter pessoal.




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